POR JOÃO CASTELA CRAVO
Desde os anos 60 do século XX que, no âmbito da 3.ª' geração dos Direitos do Homem, se faz referência, entre outros, ao direito ao património comum da Humanidade e ao direito ao desenvolvimento. É também comummente aceite que estes direitos devem ser articulados através do princípio de responsabilização das gerações actuais perante as gerações vindouras e, no, fim, perante toda a Humanidade. Daí se chega ao conceito de desenvolvimento sustentável, que deve sempre ter em conta a qualidade de vida das gerações presentes e futuras. Um equilíbrio complexo, que exige soluções também elas complexas, que põem em causa, inclusive, as questões da soberania dos Estados-Nação. O mundo e os seus recursos têm que ser entendidos como nnitos, pelo que ao desenvolvimento tem que se apensar, sempre, conceitos, como o do equilíbrio e da racionalização.
Normalmente estes conceitos são referenciados em termos de recursos naturais e encadeando-se em sistemas políticos, económicos, sociais e tecnológicos. Contudo, todo o desenvolvimento humano é assente em referentes culturais. O Romo Faber é um homem produtor de cultura, que depois a organiza numa memória reOexiva, condição fundamental da possibilidade de pensamento.
Para além da sua memória orgânica, o Homem possui ainda uma memória artificial, colectiva, armazém onde organiza a actividade do seu intelecto, ao longo dos tempos. É a essa memória colectiva que nós chamamos Património Histórico. Como valor de memória, esse Património é testemunho, seja
qual a forma que assuma. Aqui entra o termo Monumento, do latim monere, advertir, instruir. Património é, então, tudo o que é documento de História do Homem, sendo que a sua importância se traduz em conhecimento histórico e, especialmente, em valor de construção do real.
uma perspectiva ontológica, o Homem constrói o seu real, um mundo afável, porque seu conhecido. Pelo inverso, tudo o que está para lá desse mundo ôntico faz-lhe medo. Se não conhece os fenômenos o Homem-ser não os domina, não os pode natural'. Atentemos numa pequena história, naturalmente ficcionada - "O Pedra, um jovem de 19 anos, tem um acidente de mata. Transportado para o hospital, descobre-se que devido ao impacto, ficou amnésico. Não reconhece os pais, não sabe quem é. Sem outros problemas físicos, foi levado para casa. Não reconheceu aquele espaço, o seu quarto nada lhe diz, não sabe quem são os seus irmãos, os seus amigos, mostram-lhe os seus livros, en's, mas para ele nada significam!" - Será O Pedra feliz, no seu registo patológico? Claro que não!
O equilíbrio psíquico do ser humano exige balizas que assinalam o seu real construído. Ao não existirem essas balizas ou ao não as compreendermos, corremos o risco de um completo desenraizamento. E esta asserção é válida, tanto para o indivíduo como para a comunidade. Uma comunidade que perca a sua memória torna-se infeliz e hipoteca as suas possibilidades de desenvolvimento, uma vez que deixará de pensar no futuro. Sem o passado, a capacidade de pensar o tempo deixa de existir.
Mas afinal o que é o Património? Pegando no que atrás foi dito, ele é tudo o que é documento, são todas as fontes da História, desde os grandes imóveis de valor arquitectónico indiscutível, até aos ambientes, por vezes modestos, rurais e urbanos, passando por um património etnográfico, artístico, arquivístico, etc. Cada uma das peças que integram estes conjuntos são únicas, em especial se as considerarmos de uma forma local. São sinais de um tempo que urge decifrar, valorizar, racionalizar e proteger. Não apenas por deleite intelectualista, mas porque eles são recursos únicos e finitos numa perspectiva de desenvolvimento. Como Homens hodiernos, temos o direito de aceder a esse Património. Mas esse direito é onerado do dever de legatários para com as gerações do futuro.
A talhe de foice, e o que é que se passa com o nosso concelho? O concelho da Amadora não é, à primeira vista, um concelho muito rico em Património Histórico. Melhor dizendo, não abundam peças de grande escala e valor absoluto. Mas é óbvio que no concelho existem muitos vestígios históricos, que acabam por constituir um conjunto patrimonial cheio de dignidade, que nos leva a reclamar os direitos e nos onera os deveres acima mencionados. Sem querer inventariar, elenco aqui alguns, porventura dos mais importantes ao nível do Património Arquitectónico. Começando com os imóveis classificados como Monumentos Nacionais, é de referir o Aqueduto das Águas Livres (classificado por Dec. de 23 de Junho de 1910), cujas principais nascentes, uma significativa parte do seu percurso e ainda diversos ramais subsidiários se situam na Amadora. Outro Monumento Nacional é o conjunto fonnado pelas três Grutas Artificiais do Tojal de Vila Chã, em Carenque (Dec. de 20 de Janeiro de 1936), túmulos colectivos pertencentes à época do neolítico/calcolítico, formando com os exemplares da AJapraia (Cascais) e da Quinta do Anjo (Palmela) um conjunto único no Mundo. Para além destes dois Monumentos acionais, temos ainda um outro Monumento classificado, o Aqueduto da Gargantada, neste caso Imóvel de Interesse Público desde 12 de Setembro de 1978, ligado ao Palácio de Queluz. Estão ainda em estudo para classificação, outras peças, mormente a Quinta das Ton'es, na Buraca e a dos Condes da Lousã, na Damaia de que foi proprietário O conhecido Padre Himalaia. Ambas fazem partejá do Inventário do Património Arquitectónico. Mas para além destes, outros imóveis ou conjuntos têm dignidade suficiente, para além de valor histórico, para os podermos considerar como peças insubstituíveis do nosso Património. À guisa de lembrete, O Aqueduto Romano, a Ponte Velha de Queluz, exemplar único seiscentista, a Casa da Ordem do Hospital, o edificio da antiga Quinta da Brandoa, O conjunto pertencente à Casa do Infantado (em frente ao quartel dos Bombeiros), a Quinta do Assentista, a de S. Miguel, o conjunto rural de A-da-Beja, a Capela da Falagueira, o Chafariz da Porca1hota, o celeiro de quinta, junto ao Parque Delfim Guimarães, as casas Aprígio Gomes e Roque Gameiro, integradas na arquitectura ecléctica de transição do século XIX para o XX, o conjunto/frente urbana art deco da rua l.Q de Dezembro e Mestre Roque Gameiro, a mina de água que deu o nome ao Bairro da Mina, o edificio dos Recreios, enftm, muitos outros aqui poderíamos referir, mas não será esse o assunto principal deste artigo. O que é importante é perceber·se a enorme capacidade que este conjunto patrimonial
tem, na Amadora, para ser utilizado como recurso histórico· -cultural. De recordar, que na Amadora havia muitos outros edificios que entretanto foram destruídos.
Obviamente que nesta tarefa de proteger e legar o Património, não nos podemos esquecer da nossa condição de, também, produtores de Património. O Homem como animal gregário, vive em grupos, grupos que se inserem em espaços, urbanos e rurais, que não podem parar no tempo. Não se advoga aqui o imobilismo. Se um espaço não cresce, não se modifica, ele morre! E aí, a vida humana também está morta! Proteger sim, mas através do bom senso, inserindo o Património no próprio pulsar do viver. Para além dos valores histórico, artístico, cultural, etc., outros valores estão presentes no Património, sendo que o económico e o turístico, por exemplo, não são os menos importantes. Ê, então necessária uma atitude patrimonial que englobe todos estes sentidos, pois todos eles se entretecem no desenvolvimento humano. A protecção não deverá
implicar um acto de isolamento, mas sim um acto de comunhão. Claro que devemos ter sempre em conta a dignidade do monumento-documento, a sua qualidade e capacidade de gerar memória. Mas deve-se ter sempre em conta que proteger é reabilitar! A reabilitação será o caminho mais óbvio para uma boa política de Património. Os beneficiários serão, não uma entidade abstracta, mas sim os homens e as mulheres de hoje e de amanhã. Mas não se pode, neste sentido de produtores de Património, esquecer a vertente do novo Património. Proteger não só o que é antigo, mas também defender e promover a produção contínua de peças de valor, essa será uma componente lógica de uma verdadeira atitude patrimonial.
E a quem cabe esta tarefa? A todos! Instituições internacionais, Estado, Autarquias, populações! No caso português, o artº 78 da Constituição de 1976 diz que: "O Estado tem obrigação de preservar,; defender e valorizar o património cultural do povo português". Mas, para além da obrigação do Estado, necessário se torna, a construção de uma consciência social do valor do Património. Por mais dinheiro que se gaste, seja pelo poder central, seja pelo local, se a população não sentir corno seu, esse Património, ele nada valerá. Assim, não será demasiado utópico considerarmos como primeira linha de defesa e protecção do Património Histórico-Cultural, os bancos das escolas, sendo que os alunos deverão ser os principais veículos de consciencialização desta problemática. Aos professores e demais agentes do ensino cabe, pois, urna boa parte desta tarefa. E não é a Escola, uma das mais importantes peças do nosso Património? Não é aí que se devem dar algumas das mais importantes transferências de memória?
In AmadoraEduca, nº 12, Maio, 2005